kwacha
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Re: Demografia e Estado Social - Portugal e Europa
Uma questão de decência Nuno Markl
Ao longo dos meus anos de presença na Internet, em blogs ou redes sociais, fui-me habituando a que a imprensa venha, com alguma frequência, buscar aos meus textos motivos de notícia. Eu diria que 99,9% das vezes sem qualquer interesse para ornamentar as páginas de um jornal. “Nuno Markl tira a carta de condução”. “Nuno Markl reage a insulto no tromba*book”. “Nuno Markl e Ana Galvão treinam”. Das poucas vezes que a imprensa retirou algo de minimamente sumarento das linhas que escrevo, o ângulo é sempre o sensacionalista: quando o Ricardo Araújo Pereira e eu fizemos um vídeo manifestando a nossa opinião sobre as touradas, a notícia foi qualquer coisa como “Nuno Markl e Ricardo Araújo Pereira ameaçados de pancada e morte nas redes sociais”.
O meu sonho, já que os meus desvarios cibernéticos são uma fonte tão rica de notícias, é que a imprensa pegue no assunto deste post – que não tem a ver comigo – e, de alguma forma, contribua para fazer a coisa decente: falar disto, tentar abrir portas para que as coisas mudem. Não quero brilhar à conta da tragédia alheia – esta tragédia pode bater à porta de todos nós e essa é uma das razões porque isto precisa de ser falado e exposto. E resolvido.
A visita que fiz há umas semanas ao Daniel, um jovem de 9 anos internado no IPO do Porto e que, infelizmente, faleceu ontem, abriu-me os olhos para uma situação de injustiça gritante que urge ser revista. A verdade é que podemos começar com petições de Internet e afins – mas a eficácia disso parece-me sempre duvidosa. Por isso permitam-me que exponha o caso tal como ele me foi exposto pela Ana, mãe do Daniel. Porque ninguém, nenhum de nós, está livre de viver os dias, meses, anos dramáticos que uma pessoa como a Ana viveu.
Nestes casos, os pais têm direito a baixa médica por assistência a filho com doença crónica. É algo que está estipulado no despacho conjunto nº 861/99, publicado no Diário da República nº 235, série II, de 8 de Outubro de 1999. A lei envolve um limite de tempo de baixa por assistência: 4 anos. Seja o pai ou a mãe a gozar de baixa pela criança, o que conta é o tempo total em que eles estão a usufruir desse direito. Ao fim de um período de 4 anos, o pai ou a mãe tem de voltar ao trabalho. A baixa representa 65% do ordenado, tendo como máximo o valor mensal de, mais ou menos, 800 euros. Ou seja, quem recebe o salário mínimo, dispõe apenas de 11,28 euros por dia. Os pais desempregados ou trabalhando a recibos verdes recebem apenas um complemento de aproximadamente 80 euros mensais além do abono de família.
Através de um pedido especial, é possível tentar obter um prolongamento da baixa. Parece-me lógico que assim seja: nenhuma doença tem o mesmo rumo, nenhum caso tem a mesma duração ou desfecho. A triste realidade é que, se a lei é firme a estabelecer o limite de 4 anos para todos os casos, as coisas tornam-se mais improvisadas e voláteis quando se pede o prolongamento da baixa. De acordo com a Ana, e por chocante que isto seja, depende da boa vontade do responsável da Segurança Social de cada distrito. A sério: em alguns casos, a baixa é prolongada 6 meses. Noutros, um ano. Noutros casos, o prolongamento da baixa é, pura e simplesmente, recusado. É uma lotaria de mau gosto, aquilo que devia ser uma simples questão de decência, de solidariedade, de pura e simples humanidade. No pior momento da vida de uma família, o Estado não protege, não oferece garantias. Oferece um acréscimo de tensão a vidas que já ultrapassaram o seu limite de tensão. Não há outra palavra para definir isto: é sinistro.
Como explica esta mãe: “Muitos pais precisam deste dinheiro não só para acompanhar o filho que está doente, mas também para pagar os encargos que se repercutem devido à sua ausência – por exemplo o infantário ou ama que fica com os outros filhos, prolongamento no ATL, etc.)”
Num mundo mais decente – já não vou dizer ideal – cada caso deveria ser um caso. Mas se não é possível num mundo frio e burocrático o Estado personalizar a sua relação com as pessoas a quem aconteceu a hecatombe das hecatombes, então que se termine o conceito de prazo, que não se retirem aqueles 35% do ordenado e que as pessoas não fiquem à mercê do pequeno poder, da boa vontade do responsável local da Segurança Social.
Isto diz-nos respeito a todos. Partilhem, façam barulho, proponham soluções.
E por uma vez, caros amigos da imprensa, levem daqui um assunto que merece ser explorado, investigado e resolvido.
_________________ a sorte dá muito trabalho
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